DIGA, ESPELHO MEU! (por Marcelo Rayel Correggiari)

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Há mister de se registrar certas delícias desses períodos de confinamento.
Uma delas é o silêncio.
Esse humilíssimo resenhista já tinha por hábito mais a noite do que o dia. Por motivos óbvios: o silêncio. Tudo bem que não há de se captar nuances e detalhes da arquitetura cafona local sem uma boa luz solar incidindo nesses objetos de tamanha contemplação, mas ter de lidar com a horda desumana que veio destruir os vernizes da civilização — tem um personagem do inabalável Laerte Coutinho, um general que vive com medo dessa horda que fica debaixo da cama e de tempos em tempos ataca instalações e facilidades do mundo ‘mudérrnu’ — soa sempre uma tarefa para lá de indigesta.
Na rua onde moro, num raio de 200 metros, são quatro escolas. A padoca da esquina é apinhada desde seis da manhã: pai e mãe de aluno em filas duplas ou parando carros em lugares inapropriados conduzem adolescentes que se comunicam por berros e grunhidos. A cereja do bolo é um motorista do ônibus que transporta os futuros Meninos da Vila para o centro de treinamento numa deselegância brutal ao meter a mão na buzina incessantemente quando encontra algum veículo estacionado na vaga reservada.
Nem preciso dizer que há algum lado bom nessa quarentena de novo vírus corona: a vida como ela deveria ser.
“Quando tudo voltar ao normal...”, “... quando tudo voltar ao normal, ...”: quando tudo voltar ao normal, sentirei falta desse silêncio.
Aliás, a frase “... quando tudo voltar ao normal, ...” está quase no mesmo calibre da inescapável irritação quanto às futuras obras literárias lançadas nesse segundo semestre com o tema “Como Sobrevivi à Quarentena Infernal”, “Diário de Quarentena” ou “Como me Descobri um Novo Ser Graças à Quarentena”. Puta merda! Já não bastasse o Covid ter chegado para ficar – uma espécie de ‘vai & volta’ com inúmeras quarentenas intermitentes daqui para frente até o ser humano aprender a lidar com esse novo ente desconhecido –  teremos de aguentar otimismos, descobertas e outras bossas em formato ‘obra literária’, “... cultuuuuura...”.
Mais um monte de gente fodendo para caralho — numas de ‘tirar o atraso’ – artistas destrambelhados querendo “ressignificar” a vida pós-pandemia, gente tentando salvar salários numa depressão econômica que já está engolindo o mundo, bem como pessoas bem próximas de reptilianas saindo bem pior desse cenário depois que toda essa merda passar.
E temos de aguentar a ‘literatura da pós-pandemia’. Porra! Vão se foder!
Uma coisa que ando curtindo ‘para pênis’ nesse merdelê todo são os(as) especialistas de rede social.
Uma raça desgraçada...
O(A) sujeito(a) não sabe a diferença entre “mas” e “mais” e se descobre infectologista, cientista, cientista médico e os escambau. “Vai morrer muita gente...”, “... não! Não vai morrer muita gente!”, “A economia vai ficar uma merda...”, “... não! Não vai ficar uma merda!”, “Serão só duas semanas...”, “... puta que pariu! Essa merda vai até 2022!”.
Tem de tudo.
O fato de que o ‘ser humaninho’ (obrigado, Nathalye Machado, pela sugestão da expressão) não sabe limpar a bunda, mas adora brincar de ‘bola-de-cristal’, aflora em momentos agudos como esses tempos enfrentados com muito cagaço e quase nada de trepidez.
Quando não é o nosso que está na reta — leia-se “posso morrer a qualquer momento” — esse troço só irrita: não tem graça alguma.
Sou obrigado a evocar o São Nicholas Taleb e seu inapelável evangelho que prega a baixa competência e talento humanos na previsão do que for — o versículo “... meu tio, que foi Primeiro-Ministro do Líbano, sabia tanto de política quanto o motorista particular dele, o Mikail” é o mais profícuo para explicar esses tempos de muita gente orelhuda que dá palpite em assunto que não domina, além de negligenciar por completo para onde está virada a ponta do nariz.
Bom... se bem que... numa quarentena sem hora para acabar, ou é isso, ou Netflix, sexo e uma comilança demoníaca.
Ah! Tinha me esquecido: um oceano de ‘lives’! Puta merda! Dá licença! Até chamadas de vídeo com a Kelly K ensinando a Gracyanne Barbosa como dar o toba.
Mas deixo esse assunto para a próxima.
Sairemos melhor dessa?! Tenho lá minhas dúvidas.
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É autor de Areias Lunares
O Verão No Café Atlântico
(à venda na Amazon, em livro e e-book)
e colabora quinzenalmente para
THE BORA BORA REVIEW.


Comentários

  1. tá difícil. o silêncio passou a existir, mas é quebrado e esculhambado a todo momento. live de cu na mão é punheta!

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