POIS É, ACONTECE... (um conto de Antonio Luis Nilo)
Não
fazia frio em Luanda, tampouco calor. O vidro da janela do banheiro estava
aberto e o frescor do início do cacimbo não incomodava. Na África Meridional, existem
duas estações: a das chuvas, que ocorre de outubro a abril, e a da seca,
conhecida regionalmente como “cacimbo”, de temperaturas mais amenas. Abaixei a
tampa e me preparei para mijar. Um mosquito cruzou a tábua da privada no exato
instante em que o primeiro jato se desprendeu. Alvejado em pleno voo, o
pernilongo foi arremessado de encontro à parede do vaso e escorreu para a
superfície da água, ainda pouco misturada à urina. Direcionei o jato para o seu
corpúsculo que flutuava, até ter a certeza de que estava liquidado, e pensei na
possibilidade matemática de um mosquito ser abatido no ar por um jato de urina
de alguém sonolento. Uma em mil... uma em um milhão. Afinal, eu não persegui o
mosquito em seu voo. Nem tinha notado a sua presença. Ele que entrou na frente
no momento exato em que eu desferia o primeiro jato. Muito azar do mosquito. Isso
só acontece uma vez na vida. Na dele, com certeza.
Lembrei
que eu tinha que ligar pro Felipe, meu filho mais velho. Ele que não esquecesse
de jogar na mega sena no Brasil. Minha internet estava pra lá de luandense, não
dava pra jogar de casa... e no celular, o 3G se arrastava. E o prêmio,
acredite, acumulara em 115 milhões. Tinha transferido 380 reais... dava pra
fazer um jogo de 9 dezenas. A chance de ganhar subia de 1 em 50 milhões para 1
em 590 mil. Eu sei que ainda seria difícil pra caralho. Mas eu tinha acabado de
matar um mosquito em pleno voo com uma mijada... e sem mirar. Ou seja, podia
ser o meu dia de sorte.
Luanda
é a capital de Angola, um país pobre que amargurou uma história relativamente recente
de 30 anos de guerra civil. Os negros reconquistaram seu país. E boa parte dos
brancos (portugueses até então dominadores) vazaram para sua terra natal e
alguns para a África do Sul e o Brasil. Mas, com a abertura da economia, os
brancos voltaram... e trouxeram os amarelos. Os cerca de 400 mil chineses, mão
de obra barata, se multiplicavam nas atividades menos nobres das obras de
engenharia. Mas a sensação que se tinha é que não construíam apenas edifícios, pontes
e estradas... mas uma torre de Babel. Além do português angolano malemolente e de
acento lusitano, os dialetos umbundo, quimbundo e quicongo se misturavam ao
inglês falado pelos executivos das multinacionais, ao português brasileiro dos
odebrechtianos e ao mandarim de quem mais obedece do que fala.
Era
sábado, dia de descanso. Como engenheiro, tinha o privilégio de viver num
condomínio fechado em Talatona, excelente moradia. Tinha um salário do tamanho
da saudade que sentia do Brasil, apesar de visitar a família de seis em seis
meses. Vesti uma bermuda confortável e abri uma Cuca Ruiva, uma amber lager
tradicional de Angola, e comecei a limpar os espetos da churrasqueira. A
piscina estava azul e cristalina, à espera dos convidados. Eu não era um
sujeito rico, mas a construtora me garantia uma moradia acima dos meus padrões brasileiros
e eu não via mal nenhum nisso. Havia marcado um churrasco com os amigos da empresa
por volta do meio dia. Ainda era cedo, teria tempo de preparar tudo com calma e
tomar pelo menos umas 8 ou 10 Cucas.
Espetos
lavados, cervejas a menos 6 graus, petiscos cortados. Abri a quarta Cuca e me
recostei numa cadeira de praia pensando no e-mail de minha ex-mulher, mãe dos
meus 5 filhos, me pedindo mais dinheiro. A pensão não era das mais robustas,
mas tinha dúvida se deveria aumentá-la. Enquanto, de olhos fechados, fazia
algumas contas de cabeça, poooffff: uma pasta asquerosa e fedida atingiu o meu
rosto, inundando meus olhos, nariz e bigode. Corri para a pia da churrasqueira,
lavei o rosto e usei o álcool de acender o fogo pra desinfetar o meu bigode.
Parecia cocô de pombo. Corri para a piscina e olhei para o céu. Umas duas
dezenas de cegonhas ainda sobrevoavam minha casa a uns 150m de altura ou mais.
Porra, não é possível. Seria muito azar tomar uma cagada de cegonha na cara, no
conforto da minha piscina. Pensei na possibilidade matemática de isso
acontecer, mas logo desisti. Conta difícil, cheia de variáveis, que exigiria
pesquisa científica e um mirabolante cálculo de probabilidade com amostragem,
fatoriais, velocidade... impossível.
Sentia
saudade dos meus filhos, do Rio de janeiro e até de minha ex-mulher. A vida em
Luanda era uma merda, só valia o pé de meia. A campainha tocou... eram 11h10 da
manhã. Quem seria tão cedo? Olhei pelo monitor da sala que mostra todas as
câmeras da casa e vi a figura do porteiro acompanhado de um homem que eu nunca
tinha visto na vida. Será que era convidado de algum convidado? Mas por que o
porteiro não me avisou pelo interfone? Estranho.
Abri
a porta e ouvi o estampido. O filho da puta me atirou na perna e entrou em
minha casa arrastando o porteiro. O sangue esguichava, senti tontura. Só lembro
de ver o porteiro amordaçado e amarrado na coluna da sala.
Acordei
no quarto do hospital dois dias depois com o Felipe sorrindo e falando
baixinho: “Porra, pai... que susto que você deu na gente”. Perguntei o que
tinha acontecido e ele me falou do roubo, do tiro, da minha cirurgia e da
viagem que fez sozinho por imposição da mãe. Achavam que eu ia morrer. Não sei
porque, mas a primeira coisa que me veio à cabeça foi o jogo da mega sena.
Peguei meu celular na mesinha e pesquisei no Google. Vi que não tinha acertado
nem um número. Comentei com o Felipe e ele me disse que tinha sacado o dinheiro,
mas que tinha esquecido de jogar. “Porra, pai... eu sabia que você ia ficar
puto comigo então corri na banca do jogo do bicho do Jardim de Alah e joguei a
grana toda no grupo da borboleta. Eu tinha sonhado com borboleta a noite toda. Deu
na cabeça, pai. Você ganhou 6 mil reais, tá aqui a grana”.
Me
deu uma fisgada na coxa que me fez contorcer inteiro. Olhei pro Felipe e falei
pra ele ficar com mil reais e dar os outros 5 pra mãe dele.
Virei
pro outro lado, fechei os olhos e só consegui pensar na borboleta. Borboleta na
cabeça. Não é um mosquito, mas é o único inseto do jogo do bicho. Uma chance em
25.
Antonio Luiz Nilo nasceu em Santos,
e é redator publicitário e diretor de criação
há quase 30 anos,
com prêmios nacionais e internacionais.
Circulou a trabalho por todo o país,
com paradas prolongadas em Brasília,
Belo Horizonte e Salvador.
Publicou em 1986, o livro de poemas
"Poemas de Duas Gerações",
e, mais recentemente, o romance
"Ascensão e Queda de Pedro Pluma"
(disponível para venda em alnilo@gmail.com).
Além disso, atuou como cronista
para o diário Correio da Bahia.
para o diário Correio da Bahia.
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