QUARENTENA (The Big Picture por Marcelo Rayel Correggiari)
Tempos
tortos, remédios amargos.
Do jeito
que as coisas ficaram nos últimos tempos, convenhamos: já rolava algum tipo de
‘distanciamento social’ na parada. Ficar em casa, de alguma maneira, foi só ‘um
plus’.
Faltaria
algum nível (ou quantidade) de coragem para que cada um admitisse que os
círculos sociais já tinham se encurtado dramaticamente de uns tempos para cá —
assim como também falta admitir que já havia ‘uma penca’ poluindo, por motivos
psiquiátricos, as possíveis tertúlias.
Encontrar
um velho amigo, uma velha amiga, com um gesto e uma palavra doces nesses dias é
algo que vale bem mais que ouro. Ainda tem gente que acredita que sairemos
melhor ao final de toda essa turbulência — nome bacanudo para ‘tragédia e
carnificina’.
Tenho lá
minhas dúvidas se estaremos melhores ao final de tudo: com as perdas já
contabilizadas por causa da praga, não sabemos como repor a riqueza intangível
perdida por conta de severos quadros médicos irreversíveis.
Daremo-nos
por felizes se estivermos vivos daqui a duas semanas, ou nos próximos dois
meses.
Certamente,
em caso de sorte, será um réveillon silencioso e inesquecível, tipo de quem
conseguiu, sabe-se lá como, sobreviver a tudo isso. Vejam os exemplos das
‘sub-celebridades’ — quase todas do meio empresarial — que deste ponto em
diante do texto chamarei de “filhos da puta”.
Com medo
de uma crise sem precedentes na economia — como se a própria já não tivesse
partido para o vinagre há tanto — os filhos da puta querem mais flexibilização nas
medidas sanitárias para ‘salvar empregos’.
“Que
empregos, filhos da puta?! A população ‘tá’ no ‘miserê’ ao longo de, por baixo,
uns cinco anos! Que emprego, filho da puta?! Que emprego?!”, alguém diria.
Vamos ver se entendemos direitinho: “Aaaaiii... vou ficar sem meu
milhãozinho... coitado de mim! Volta ‘pra’ trabalhar, ô, esparro, garante meu
milhãozinho e foda-se seu pai e sua mãe... e o resto da palafita onde você mora”.
Se
entramos na carnificina dessa praga, mais ou menos nessa base, alguém me
explique como “.... sairemos melhores”?!
Sem
chance... quando começa ruim, termina bem pior.
O
delírio é enorme. Tudo é a porra do governo, galera fazendo um esforço para não
colapsar tão cedo seu sistema de saúde, gente morrendo aos borbotões, e vagabundo
pensando em dinheiro uma hora dessa.
Dá
licença!
Pessoalmente,
não sinto tanto o baque: como citado no início desse desabafo, já venho em
isolamento social há algum tempo. Motivo simples: a ética das
‘sub—celebridades’ —os filhos da puta — já se encontra no chão de fábrica dos
pequenos segmentos sociais, festinhas, reuniões e cervejinhas: hoje em dia,
o(a) sujeito tem de avaliar bem com quem dividirá uma birita e horas
agradáveis.
Se
bobear, as tais ‘horas agradáveis’ viram um inferno: quando menos se espera, a
pessoa na sua frente ataca com a bosta da ultradireita, a merda do
hiperprogressismo, uma avalanche de identitarismo, frases prontas, palavras de
ordem... ‘clichezão’ até nas peças de roupa. Puta que o...
E esse
‘tic-tac’ da morte: não sabemos se sobreviveremos, se estaremos vivos nos
próximos meses. A luta pelo poder em seu ápice: quanto mais de nós morrermos
daqui para frente, melhor para essa putada.
Algumas
vantagens: esse ‘distanciamento social’, por exemplo, bem gerido, é só aplicar
algumas regras básicas de inércia e a boa prática pode salvar sua vida. Uma
outra coisa que, talvez, dê saudade: o silêncio. Ruas vazias, molecada
brincando de taco até uma da manhã, paz nas alvoradas sem a porra da fila dupla
em porta de escola e a ausência daquele enxame de gente num alarido pútrido em
padarias e estabelecimentos comerciais em torno de certos tópicos que é de se
pensar como o desafio à fisiologia básica coloca o cu com uma tremenda inveja
da boca.
E
palitos de dente para apertar teclados de elevador: caso saiamos vivos, não
temos de ‘salvar a economia’ em ruínas. Temos de salvar é o meia-nove!
Caso o
SARS-CoV-2 não me tome a vida nos próximos meses, mesmo numa falência de dar
dó, decidi qual será o meu futuro: alô, Bertioga (ou Peruíbe)! Aqui vou eu!
Acabou de ganhar seu mais novo pagador de IPTU.
Não sei.
Saco para gente tacanha acho que ainda tenho. Agora, para filho(a)-da-puta
escrotérrimo(a) e sacana, “... sem tempo, irmão!”. Afinal, com alguma sorte,
ganharei minha segunda chance para envelhecer. Juro que farei de tudo para
avançar por esse tempo que me resta com o mínimo de dignidade.
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É autor de Areias Lunares
e O Verão No Café Atlântico
(à venda na Amazon, em livro e e-book)
e colabora quinzenalmente para
THE BORA BORA REVIEW.
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