O POÇO É SEMPRE MAIS FUNDO DO QUE IMAGINAMOS (por Antonio Luiz Nilo)



Existem várias categorias de filmes. Aqueles, por exemplo, que você vê com a exclusiva finalidade de se divertir, pouco se importando com a qualidade do roteiro, o nível da direção ou a precisão da montagem. O máximo de crivo técnico que pode sair da sua boca é algo do tipo: “Mas aquela velhinha trabalha pra cacete, né não?”

Ou aqueles outros que você escolhe na Netflix porque brigou com a mulher ou levou uma comida de rabo do chefe e quer apenas extravasar. Aí eu incluo os Velozes e Furiosos e Transformers da vida, onde a produção pode até levar um Oscar, mas o roteirista não passa de um candidato ao Framboesa.

Ou então aqueles filmes que os cinéfilos se afundam na poltrona, piscando uma única vez a cada 50 minutos, atentos a um inusitado plano-sequência, à perfeita disposição de objetos de uma direção de arte impecável, a uma narrativa que desconstrói a cronologia ou a um roteiro de diálogos inteligentes e licenciosos. O protótipo da película cult, razão da existência dos festivais independentes.

Mas existem também aqueles filmes para pensar. Isso mesmo, filmes feitos para pensar. Não estou falando de vídeos de internet sobre equações matemáticas indecifráveis ou transmissões ao vivo de torneios de xadrez... ou ainda guias de como aprender a jogar “Go” em alto nível em apenas 3 aulas. Nada disso. Estou falando de filmes do mais legítimo cinema, que podem até se encaixar na categoria cult ou alternativo, mas que são produzidos com o único objetivo de explodir cabeças na tentativa de decifrá-los (“Scanners  Cronemberguianos”). A lista é grande, mas vou citar apenas os enigmáticos Donnie Darko, Cidade dos Sonhos e Estrada Perdida (eu mesmo só fui entender alguma coisa dos três filmes depois de ler fóruns de discussão na internet de mais de 20 páginas... e confesso que não conseguiria explicar nada a ninguém).

Pois é, escrevi isso tudo aí só para falar do filme a que eu assisti ontem e que se encaixa nessa última e desafiadora categoria. Estou falando do espanhol “O Poço”, recém-lançado pela Netflix.

Em primeiro lugar, eu gostaria de comentar que gostei muito do filme e que arrisco dizer que entendi sim o seu final, diferente da grande maioria que assistiu e comentou em blogues e timelines. Quero apenas me aventurar numa interpretação que me parece razoável, embora discutível. Ou seja, é a minha opinião... e opinião é que nem **, cada um tem o seu (mas morre de vergonha de mostrar).

Então, meu amigo, se você ainda não viu o filme, e tem medo de spoiler, é melhor parar por aqui. Se bem que o filme é tão interpretativo e simbólico que contar a minha versão ou não contar nenhuma pode ter o mesmíssimo efeito. Por isso, meu velho, já que você chegou até aqui, é melhor ler essa porra até o final.

Pra começar, o filme é incrivelmente dinâmico e provocador. É impossível parar no meio e dormir para assistir no dia seguinte. A direção não é inovadora, apenas segura. A direção de arte é competente e a estética crua e agressiva. Mas é na ideia, no argumento, que o filme ganha destaque, a ponto de atrair cada vez mais os confinados de plantão.

O filme se passa em uma gigantesca prisão vertical, onde os presos se dividem, dois a dois, em andares (níveis). Na verdade, são celas quadradas com um vão no centro. Por esse vão, desce diariamente uma plataforma repleta de alimentos que é a única fonte de consumo dos detentos.
Essa plataforma permanece pouquíssimos segundos em cada andar do prédio, tempo que os prisioneiros têm para se alimentar. Acontece que, conforme desce, a plataforma vai se esvaziando, fazendo com que os presos que estão nos andares de baixo morram de fome ou se matem por alimento. Quanto mais profundo o poço, mais bizarra e violenta é a reação dos homens, ensandecidos pela fome.

A interpretação mais lógica e cabível (não precisa ter QI de três dígitos para alcançá-la) é que a prisão vertical representa os desníveis das classes sociais no mundo capitalista e desigual em que vivemos.  Mesmo sem fazer apologia direta ao socialismo, existe a intenção clara de mostrar que o comportamento de quem está num nível superior é totalmente diferente daquele que chafurda nos restos que a sociedade lhe impõe. Enquanto os que vivem em cima são egoístas e não pensam em dividir o que têm, mantendo a todo custo o seu conforto e segurança, os de baixo têm que recorrer à violência para sobreviver.

O protagonista Goreng, interpretado pelo ator Iván Massagué (de “O Labirinto do Fauno”, do excelente Guillermo del Toro), acorda de repente como prisioneiro nessa masmorra vertical de centenas de pisos. Depois de entender o mecanismo da prisão e conhecer um pouco o drama dos marginalizados, ele, como um inusitado redentor, sugere a divisão igualitária dos alimentos. Apesar da desconfiança de todos, ele se empenha em levar adiante o projeto utópico. A partir daí, se desenrola uma série de acontecimentos que constroem o padrão de crueldade e violência do filme.

Para evitar mais spoilers, dou agora uma bela pressionada na tecla que adianta o filme e aperto o play a poucos minutos do final. E chego no ponto exato do objetivo desse texto: desvendar o mistério das cenas finais. E aqui começam também as minhas próprias interpretações.

Goreng encontra um parceiro negro (sugere representação de minorias) que adere à causa e começa, com ele, a sua saga de descer na plataforma e dividir o alimento com quem mais precisa, mesmo que pra isso tenha que usar de extrema violência em execuções espetaculares. Mas era necessário que a administração do presídio (que pode ser interpretada como o governo nos dias atuais) soubesse que algo de diferente estava acontecendo e que alguns presidiários (representantes da sociedade) estavam se “organizando” para solucionar o problema da fome.

Já que o isolamento é total, eles resolvem então enviar um sinal para a administração (que, obviamente, funcionava no andar mais alto do edifício) para tentar explicar essas transformações (sociais).

Como eles sabiam que a plataforma, depois de atingir o fundo do poço, subiria novamente para a administração a fim de ser reabastecida de alimentos, tiveram então a ideia de preservar uma sobremesa para enviá-la ao andar mais alto do prédio. Seria um sinal. Uma prova de que, com a sobra do alimento, uma nova consciência estaria surgindo no ambiente violento do cárcere.

Mas, em determinado momento, eles encontram uma criança em um dos andares mais baixos da prisão. Algo que pode ser interpretado como um delírio de Goreng e de seu parceiro (ambos fragilizados pelas disputas corporais com os prisioneiros violentos), já que o presídio só internava adultos. E também porque seria impossível sobreviver em andares tão baixos, ainda mais uma criança.

Ao chegar no fundo do poço, Goreng resolve então enviar a criança como sinal. E, em mais um ato de coragem, desiste de subir com ela, abdicando de sua própria salvação. E assim termina o filme.

Pronto, depois de praticamente escrever um romance, chego agora no ponto onde queria chegar. Finalmente posso dar a minha versão interpretativa para esse final misterioso.

Se você conseguiu sobreviver até aqui, fique tranquilo, agora faltam poucas linhas e sobram teorias particulares. Aqui vai a minha:

Goreng, na qualidade de um homem bom, encara essa saga violenta na intenção de distribuir os alimentos entre os necessitados.

Nem tanto!

Analisando a simbologia, Goreng pode ser interpretado como um falso herói. Um clássico governante populista, que na propalada missão de fazer o bem, acaba usando métodos nada simpáticos, como ameaçar prisioneiros ou simplesmente rachar os seus crânios quando não concordavam com ele. Opressão típica de ditadores e tiranos.

Até o ato de não subir com a criança na plataforma é incapaz de caracterizar a figura do herói. A tentativa de virar um mártir... talvez. Até porque ele deveria imaginar que teria poucas chances de sobreviver à subida ou escapar da prisão. Passar para a História seria muito mais interessante.

Uma última dúvida: por que a criança seria a mensagem ideal? Sinceramente, eu não fui capaz de identificar. Até penso que ela de fato não existe. Acho apenas que qualquer coisa que lá em cima chegasse seria encarada como um aviso de que algo de anormal estaria acontecendo. Uma tentativa de comunicação. E isso já seria suficiente para fazer a administração tomar alguma medida... para o bem ou para o mal. Algo como uma reclamação do povo que o governo acata ou simplesmente rechaça, conforme o seu próprio interesse... e não o do povo, como sempre.

Moral da história: os desprotegidos podem até chegar ao fundo do poço, mas dificilmente quem está lá em cima vai se afetar com isso.




Antonio Luiz Nilo nasceu em Santos,
e é redator publicitário e diretor de criação
há quase 30 anos,
com prêmios nacionais e internacionais.
Circulou a trabalho por todo o país,
com paradas prolongadas em Brasília,
Belo Horizonte e Salvador.
Publicou em 1986, o livro de poemas
"Poemas de Duas Gerações",
e, mais recentemente, o romance
"Ascensão e Queda de Pedro Pluma"
(disponível para venda em alnilo@gmail.com).
Além disso, atuou como cronista
para o diário Correio da Bahia.


Comentários

  1. Não é só uma criança... É uma criança fêmea indígena, totalmente isolada, não possui "companheiro" de cela. É única e se sobreviveu até então sobreviveu sem o que a "Administração" provém a todo restante, é "especial" como Goreng mesmo comenta... Ela é a mensagem, o começo, a vacina... E o prato de amanhã...

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